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Quinto capítulo: Reconstruction



- Você não encontrou nenhum adulto nesta cidade, e esta é uma grande pista para entender quem são elas - disse Rafael apontando para as crianças.


- Você me pergunta de seus pais e lhe digo que eles não estão aqui. Não aqui na praça somente, não estão nesta cidade. Aqui estão somente as crianças, eu, é claro, e mais alguns "como eu" que têm tarefas específicas no cuidado com elas. Eu e meus "semelhantes" fomos destinados a cuidar delas e zelar por este lugar. Em cada cidade tem um grupo de escolhidos que executa o mesmo trabalho. Ah! Desculpe, não lhe expliquei que cada cidade de sua "realidade" tem uma cidade "irmã" que abriga suas crianças. Mas agora já sabe.


Meus pensamentos estavam confusos e havia mil ideias em minha cabeça. E Rafael continuou falando...


- Venha comigo - disse ele - Vou lhe mostrar um lugar que vai esclarecer suas dúvidas.


Deixamos a praça e seguimos por uma outra via. Era uma via mais estreita e sinuosa e nas suas laterais havia grandes acácias rubras muito floridas, que impressionavam pela beleza. As pétalas caídas formavam um tapete sobre a via e os ladrilhos esverdeados ficavam em segundo plano. O destaque era um mar vermelho de pétalas, que se moviam com o vento.


Andar por ali era como caminhar num sonho. As acácias rubras estendiam seus galhos de um lado a outro da rua, como se formassem um túnel, mas iluminado pelos raios de sol que atravessavam os espaços entre as folhas, causando um efeito visual surpreendente.

Enquanto caminhávamos, eu observava Rafael. Sua barba e cabelos brancos indicavam ser um homem de bastante idade, mas ele seguia pela via como um menino, em passos rápidos e firmes, sem parar para descansar. Seu semblante sereno transmitia segurança e, ao mesmo tempo, gerava em mim uma inquietação.


Afinal, quem era este senhor? De que parte do mundo veio? Ou melhor, de "qual" mundo? Rafael se deteve diante de um grande portão dourado. Após ele, sobre uma colina, se erguia um prédio intrigante...


Grandes colunas em volta de todo o prédio sustentavam uma cobertura verde exuberante, quase uma floresta. Esta cobertura se prolongava pelas duas laterais, descendo gradativamente até o solo. A pequena floresta se estendia também por estes prolongamentos e se unia à vegetação densa que contornava a área do prédio.


As colunas estavam totalmente cobertas por trepadeiras. Eram madressilvas brancas e amarelas, ipomeias rubras, glicínias lilases e brancas, jasmins de Madagascar e ainda outras...


Confesso que não sabia o nome de nenhuma delas, apenas sabia que eram plantas trepadeiras. Mas ao olhar para as colunas, para cada detalhe, para cada ramo, os nomes surgiam em minha mente e eu podia identificar cada planta, como se o próprio lugar se apresentasse ao visitante.


Rafael abriu o portão dourado e subimos a colina. Além das colunas, o prédio tinha paredes de pedra e no centro um grande portal conduzia ao seu interior. Percebi que havia uma agitação do outro lado. Um barulho e muita movimentação, denunciando a presença de muitas pessoas.


Fui seguindo atrás de Rafael e cruzamos o portal. Antes de entrar na próxima sala, Rafael me interrompeu esticando o braço contra meu peito.


- Espere um minuto. Aqui neste lugar estão trabalhando meus irmãos e o trabalho que aqui realizam é a alma desta cidade. Sendo assim, peço que observes tudo para entender, mas não interrompa os que trabalham. Eu esclarecerei suas dúvidas, se acaso vendo tudo o que transcorrer aqui neste lugar, ainda permaneças com elas.


Assim que me liberou, caminhei por uma sala ampla e perfeitamente limpa. Havia mulheres e homens com roupas brancas e também em amarelo muito claro. Caminhavam atarefados cruzando a sala, tomando os corredores adjacentes e desaparecendo neles enquanto outros apareciam, vindo de outras áreas. Todos pareciam ansiosos. Poderia ali ser um hospital?


Uma das salas laterais se abriu e pude ver outros adultos. Alguns homens usando máscaras sobre boca e nariz. Agora tinha certeza, era um hospital. E vi alguns bebês sendo conduzidos pelos corredores. Eram recém-nascidos. Fiquei muito curioso. Rafael havia me levado a uma maternidade? Ele parece ter lido meus pensamentos. Veio até mim e disse:


- Você está começando a perceber as coisas. Abra seus olhos e coração e você compreenderá o todo. Venha, entre comigo nesta sala com portas vermelhas. Ali tudo vai estar diante dos teus olhos.


A sala era um pouco escura e havia uma música tocando muito suavemente em volume bem baixo. Havia seis enfermeiros, ou médicos, não sabia ainda o que faziam os companheiros de Rafael. Quatro deles estavam no centro da sala. Eram duas mulheres e dois homens. Uma mulher morena, mais velha, de cabelos negros, muito compenetrada, e outra mais jovem, cabelos ruivos, pele muito clara.


E havia dois homens jovens. Um alto, pele negra e semblante sério. O outro era de pele clara, barba densa e bigode. Parecia mais simpático, com um sorriso no rosto. Usavam trajes vermelhos, grandes luvas que cobriam quase todo o braço, máscaras sobre boca e nariz.

Estavam em silêncio ao redor de um tanque de vidro relativamente grande. No tanque havia água cristalina, transparente e sobre ele um suporte onde havia muitas luzes, cujo brilho se concentrava sobre o tanque.


Achei estranho estarem posicionados daquela forma, e mais estranho ainda aquele tanque de vidro, circular, como uma piscina infantil de bordas arredondadas. Estava suspenso numa base de pedra, ficando na altura do peito dos que ali estavam.


Eles olhavam constantemente para a água, que se agitava. Um pouco mais ao fundo estavam mais dois homens jovens, ao lado de uma grande vela que emanava um brilho amarelo marcante. Apenas consegui ver que eram mais jovens pois usavam capuz e ficavam parcialmente encobertos. Suas vestes eram totalmente brancas e não usavam luvas.


A certa altura, a mulher morena olhou para Rafael e fez um sinal, chamando sua atenção. Imediatamente Rafael se dirigiu a mim e disse:


- Agora é o momento. Mantenha sua mente aberta e observe com cuidado o que irá testemunhar.


Houve um ruído na sala, além da música. Um som que invadiu o ambiente como um gemido, mas num sussurro que deixou uma tensão no ar. A água no tanque ficou mais agitada e... Que loucura! Começou a se turvar de vermelho. E lembrei do Itajaí-açu quando a majestade da noite precipitou sangue sobre ele.

E era sangue o que eu via no tanque. Toda a água havia virado sangue e se agitava ainda mais. Nesse momento, os companheiros de Rafael que estavam ao redor do tanque passaram a introduzir as mãos dentro dele, em movimentos circulares.


O que via era completamente estranho e olhei para Rafael como que questionando o que acontecia. Ele fez um gesto reprovando minha distração e me fez voltar a olhar o que seus companheiros faziam.


O que testemunhei foi assustador. Eles faziam esses movimentos de forma sincronizada, com um cuidado extremo. Se entreolhavam como se cuidassem uns dos outros na realização do trabalho. Por alguns instantes parecia que nada acontecia, mas aos poucos percebi que seus movimentos ficaram mais lentos.


Havia algo naquele tanque e vi que começaram a capturar coisas que iam surgindo no tanque... Nossa! Começaram a capturar pequenas partes de corpos, como se estivessem mutilados. Esses fragmentos iam surgindo mais e mais naquela agitação da água, ou melhor, do sangue.


Mas não retiravam do tanque. Todos passavam os fragmentos para a mulher mais velha, que não fazia o mesmo movimento deles, mas sim, ia unindo cada parte que recebia, como se estivesse reconstruindo aquele ser. Eu estava tremendo. Todo aquele sangue me deixava perplexo, numa mistura de curiosidade e medo. Mas não me deixei abater. Claro que o fato de Rafael segurar com firmeza meu braço me ajudou muito a permanecer atento.


Meus olhos não saíam do tanque e em minha mente se passavam milhões de pensamentos, de dúvidas, de questionamentos. O que estava ocorrendo naquela sala? Que ação tão milagrosa estava sendo realizada diante de meus olhos?


De repente, todo o processo foi interrompido por um outro som. De forma singular e vibrante, tudo foi abafado por um choro, um choro de bebê. Eu estava maravilhado, a emoção invadiu meu coração e lágrimas verteram de meus olhos. A mulher que uniu as partes do corpo dentro do tanque segurava agora um bebê lindo, que se contorcia e chorava alto.

A outra mulher do grupo pegou panos que estavam num balcão próximo, ao fundo, secou seus membros e cabeça e cobriu-o com uma veste branca e se afastou, ficando com os dois jovens que trabalharam no processo. Eles pareciam cansados, mas passaram a entoar um canto, tão baixinho que eu não conseguia entender.


Os dois homens de veste branca vieram para perto do tanque, trazendo também a grande vela. Eles se posicionaram ao lado da mulher morena que segurava o bebê. Ela falou a eles:


- Padrinhos, estais decididos a ajudar esta criança em sua missão?


Em uníssono, eles disseram um forte "Sim" e a mulher fez o sinal da cruz na testa da criança. Em seguida, ambos marcaram também a criança com o sinal da cruz e abriram pequenos frascos, que apresentaram à mulher. Eram óleos, que ela usou para ungir o peito da criança, fazendo o sinal da cruz e dizendo:


- O CRISTO SALVADOR te dê sua força. Que ela penetre em tua vida como este óleo em teu peito.


Fiquei assustado com o que estava vendo. Os dois homens que a mulher chamou de "padrinhos" tomaram a grande vela e mergulharam parte dela no tanque, que estava ainda cheio de sangue. Ao tocar o sangue, este pareceu efervescer e foi se agitando, em espirais, ao mesmo tempo que ia clareando. Em segundos não havia mais sangue naquele tanque e sim uma água cristalina e transparente.


A mulher inclinou a criança e aspergiu daquela água sobre sua cabeça por três vezes, enquanto declarava:


- Bárbara, eu te batizo em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.


Ela entregou a criança aos padrinhos e lhes afirmou:


- A vós, padrinhos, se confia o encargo de velar por esta criança, para que viva sempre como filho da luz, persevere na fé e quando o Senhor vier, possa ir ao seu encontro com todos os Santos, no reino dos céus.


Eu estava completamente deslocado. Um batizado estava ocorrendo naquela sala, depois daquela ação miraculosa que se operou no tanque de água e sangue. Os padrinhos caminharam em minha direção com a criança no colo e um deles me falou:


- Olá, visitante! Eu sou João e este ao meu lado é Thiago. Quem conduziu nossos trabalhos nesta sala foi Miriam, a guardiã deste portal. Vejo que você está um pouco assustado com o que presenciou e talvez não tenha entendido completamente o que aqui fazemos. Deixe-me lhe apresentar a Bárbara, essa linda menina de olhos azuis e cabelos negros que acabou de chegar ao nosso mundo.


Miriam abriu parte da veste que cobria a criança e pude ver uma criatura bela, que já não chorava. E João me fez segurá-la em meus braços. Hesitei um pouco e quase não sabia como segurar, mas, com a ajuda de João, ajeitei Bárbara em meus braços. Que sensação, que emoção invadiu minha alma. Nesse momento, Miriam se aproximou, olhou diretamente em meus olhos e disse:


- A reconstrução está terminada. Bárbara é uma criança sadia e me parece muito feliz em seus braços. Agora ela será conduzida ao berçário onde irá receber os cuidados necessários e também uma primeira refeição. Uma nova jornada começa agora para ela, num novo mundo acolhedor que aos poucos lhe será apresentado.


Miriam chamou por um sinal a outra mulher do grupo, a ruiva de pele clara, e me apresentou ela.


- Esta é Rosa, uma de nossas "cuidadoras", assim como João e Thiago, e também lá atrás, Mônica e Maurício. Agora Rosa irá conduzir Bárbara. Se desejar, pode ir com ela levando a criança em seus braços.


Eu não pensei duas vezes. Queria ficar com Bárbara mais um tempo e fui com Rosa ao berçário. Lá estavam muitas outras crianças numa sala ampla e iluminada por uma luz suave.


Ali havia outros adultos que atendiam aos bebês, cuidando de sua higiene e de sua alimentação. Eram tantos, tão lindos e fofos. Circulei pela sala e olhei de perto muitos deles.


Alguns dormiam serenamente, outros já faziam alguma bagunça, puxando os panos e cobertores. Na sala havia aquele cheirinho gostoso de infância, aquele perfume de quarto de criança, que me fez lembrar de meus filhos quando eram bebês frágeis em meus braços.


Poderia segurar a todos em meu colo, pois adoro bebês, mas Rafael interrompeu meu passeio no berçário e me levou de volta à sala do tanque. Ali me conduziu até próximo daquele tanque intrigante, que estava com sua água cristalina, mas se mostrou tão diferente quando da chegada de Bárbara. Pediu-me para colocar as mãos na água e se colocou do outro lado, bem à minha frente.


- Meu amigo, já compreendeu tudo o que aconteceu aqui? Já tem as respostas para suas indagações?


Eu olhei para o semblante de Rafael. Ele estava sereno, mas eu podia perceber que havia uma ansiedade em saber o que estava em meus pensamentos. Fiquei em silêncio por um tempo, olhando a água do tanque, mexendo minhas mãos dentro dela. Sentia uma energia que subia por meus braços e me acelerava o coração.


- Eu creio que compreendi tudo, Rafael. Estou muito perturbado com tudo o que vi e senti aqui em sua cidade, mas o que mais me impressionou foi o que presenciei aqui nesta sala. Isto que vocês chamam "Reconstrução" me assustou inicialmente, mas depois me deixou eufórico, cheio de uma alegria imensurável. Ver a reconstrução daqueles que, sem defesa e sem compaixão, são descartados em nosso mundo, principalmente por aqueles que mais deviam amá-los, me trouxe uma nova esperança e uma nova compreensão da realidade. Saber o que você e seu grupo realizam, ver esta "reconstrução", ver esta magnífica Blumenau e seus pequenos habitantes, é como tocar o céu e sentir o sabor da vida eterna.


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